NO CALOR DA CENA

23º FESTIVAL CENAS CURTAS | NOITE #4

03/09/2022

por Soraya Martins

Sobre mandingar palavras

Reflexões e expansões a partir das cenas Aquilombamento Digital, Oral, Ekè e Pulmões.

A última noite do Festival Cenas Curtas foi invadida pela palavra, ou melhor, pela necessidade urgente de fazê-las saírem pela boca para não engasgar, para jogar luz no que precisa ser dito e, sobretudo, escutado. Uma dialética da urgência. Fala e Escuta. Escuta. Escuta. Escuta. Transformar as palavras em ações e gestos sensíveis e concretos que apontem para uma organização da sociedade não igualitária, mas opaca. Uma opacidade que não tem a ver com os slogans vazios e problemáticos da tolerância, da diversidade e da representatividade. Ela, opacidade, é a mais vivaz das garantias de participação e confluência e o mais simples equivalente da não-bárbarie. Fundamenta as relações – as corpas – em liberdade.

A cena-show Aquilombamento Digital, da Companhia Negra de Teatro, é o transbordamento da palavra via rap, discurso rítmico/meio de expressão caro para os jovens negros das periferias brasileiras.  Nada mais simbólico, numa cena que denuncia o racismo e anuncia de antemão que é um show “pé na porta”, a presença de dois microfones no palco. Mais do que um elemento que compõe a cena, os microfones têm a função de ampliar, fazer ecoar as vozes dos dois atores-performers. Essas vozes, quase como um mantra, envolvem o público que, chamado a aquilombar, independente da cor da pele, se transforma num coro-quilombo e em uníssono engrossa o canto dos atores. “Quilombo, quilombo, quilombo”. O aquilombar do show-cena, típico das culturas negras, sinaliza não para um lugar comum de se pensar a prática do aquilombamento, ou seja, um agrupamento, antes, aquilombar é juntar para criar e recriar, recarregar os corpos da negrura de sentido e produzir outros discursos que precisam ser ouvidos.

É preciso dizer. Na cena Oral, de Cecília Ripoll, as palavras também têm urgência em sair. A atriz é um corpo-pululante de palavras, que a convulsionam e reverberam em seus poros, até saírem. E quando saem, criticamente, explicam pra poder nos confundir, nos confunde pra poder escurecer, ilumina pra poder cegar, para, talvez cegos, termos a capacidade nos guiar. Quase numa alegria pra poder chorar, como na música de Tom Zé, Oral, num jogo de metalinguagem, além de apontar para a necessidade de dizer palavras, aponta para os perigos do consumo excessivo delas. É perigoso ou gozo dizer? As palavras não surgem mais efeito? E o silêncio? E a escuta? Como penetrar nos ouvidos moucos de uma sociedade que escuta para poder silenciar e que vê para poder cegar?

Como juntar fé cega e faca amolada para podermos mandingar poeticamente e chegarmos num Ekè? A cena-truque-mandinga que traz Amora Tito, Eli Nunes, Hadá Amaral, humcorpo-Dýãnà, Lázara dos Anjos, Lui Rodrigues, Sol Markes, Wanatta, é uma cena que convoca a palavra e, acima de tudo, as corpas como palavra-discurso. Corpas que falam por palavras, por silêncios, por cheiros e sensações. Corpas que não querem ocupar todos os espaços, porque tem espaços que nem deveriam existir.  Corpas que não cabem na caixinha somente da resistência. Criam e choram e riem e se felicitam e se juntam como uma grande corpa cultural, fazendo emergir outras formas de territorialização e de sociabilidade em cena, consequentemente, dando nova dimensão pública ao fazer teatral. Essas corpas não dizem sobre a diferença e/ou a diversidade, instauram uma poética relacional e política que evidencia o surgimento de desejos, relações sociais e culturais e modos associativos novos que apontam para o performativo, para “um mim de eu”. Para um ser e estar, no palco e fora dele, em liberdade.

É sobre ter (buscar ter) ar para respirar. A cena Pulmões, da Cia Mineira, “dividida” entre o dizer palavras, num primeiro momento,  e a tensão do silêncio, quase que para pegar ar, é uma cena-relacional que coloca dois atores em suspensão de tempo-espaço e suspende o tempo-espaço também do público. Num jogo que mistura sufocamento e fôlego e tensiona os modos de relacionalidade, a cena sinaliza para o irreparável das coisas, que afogam em si mesmas. Imergem na dor e nas sombras. Sinalizar para o irreparável  das coisas no mundo não quer dizer, no entanto, deixar de procurar frestas para fazer o ar entrar, uma metáfora que aponta que ainda é preciso tentar reparar o irreparável. É essa metáfora-tentativa que nos faz mandingar e tecer palavars e gestos sensíveis e concretos de mudança.

Soraya Martins é crítica, atriz, pesquisadora de teatros e curadora independente. Foi curadora do Festival Internacional de Artes Cênicas da Bahia-FIAC 2019-2021 e do Festival Internacional de Teatro FIT-BH 2018. Doutora em Literatura (PUC Minas), pesquisa as estéticas contemporâneas negras e seus processos de sociabilidade e fabulação em cena.