NO CALOR DA CENA

23º FESTIVAL CENAS CURTAS | NOITE #1

31/08/2022

por Fredda Amorim

Não teria outra maneira de começar essa conversa (é isso mesmo, isso é uma conversa) saudando o (RE)encontro com o teatro. Passamos por momentos que sabemos bem o tanto que foram difíceis, isolados, cheios de saudades. Hoje, quando virei a Pitangui e vi a porta do Galpão “cheidegente” na fila, pessoas eufóricas, comprando seus ingressos para ver TEATRO, meus olhos brilharam, ninguém viu, mas brilharam. A primeira noite de cenas presenciais do 23º Festival Cenas Curtas do Galpão Cine Horto foi, sem dúvidas, uma celebração à vida e aos encontros. Casa cheia celebrando em grande estilo esse banquete que nos foi servido. Já adianto que constatei que teria uma missão difícil pela frente. Essa crítica/conversa nada mais será que uma costura despretensiosa daquilo que meu olhar buscou interpretar, reunir e dissociar.

De forma provocativa, a primeira cena já nos desloca o olhar logo de início quando percebemos, ao entrar na sala do teatro, com a cena já montada para começar, que no meio do palco tinha uma pedra (e não era no caminho) deslocando nossos olhares para o inusitado, afinal de contas esperamos atrizes ou atores a postos e microfonados. E se quem atuasse nessa noite fosse uma pedra? Proveniente de Belo Horizonte, a cena E se?, dirigida por Rafael Batista, dramaturgia de Vitor Julian e encenação de Arthur Barbosa e Arthur Rogério, operou como um grito de alerta que gera uma grande interrogação generalizada no público. A cena foi executada em um único ato frente a frente e todos estavam diante deles. Na frente do Arthur, da pedra e do Arthur novamente. Um diante do outro e ambos diante da pedra numa composição de primeiro e segundo plano que foi proporcionado por uma projeção transmitida em tempo real com focos específicos nos rostos dos atores e suas expressões muito marcantes diante dessa grande problemática, “o brilho da tela no máximo. Isso não machuca os seus olhos?!” Dois copos cheios de água, dois homens, uma pedra: é uma questão. FINALIZA COM BARULHO DA PEDRA. 

Me interessa pensar este lugar da crítica de teatro a partir de outros vieses e outras esferas que me fazem pensar esse fazer artístico de forma espiralar como nos ensina Leda Maria Martins e suas “performances no tempo espiralar” ou como Dodi Leal e sua desconfiança sobre as teorias que não dançam ou do clamor da corpa monstra de Jota Mombaça e o clamor daqueles que, como Conceição Evaristo e Jota, também combinaram de não morrer agora e, porque não, misturar tudo o que é possível pensar sobre fazer teatro de tal modo que não seja possível saber onde começa ou onde termina a força da afetação e afetoAÇÃO que este acontecimento pode nos causar. 

Destaque para o escracho didático de Danilo Mata em sua cena + Indetectável que, para além de costurar uma ambientação ora cômica ora grotesca, consegue fazer o público deslocar o pensamento da normativa social para se ligar numa questão que é muito mais afetiva do que talvez política. A cena que começa com a música “Geni”, de Chico Buarque, lança uma questão que também é um se: Se joga pedra na Geni, cuidado com o seu telhado. A sorofobia é um vômito entalado na garganta da porca, da cadela, de toda sociedade que, desde a década de 1990, cria mecanismos de exclusão de muitas pessoas pertencentes a uma camada social que está resignada a isso: corpas mostruosas LGBTQIA+ e mais e mais, mas, assim como Suzy Shock, Danilo também reivindica seu direito de ser uma monstra, uma porca, uma cadela e, a partir desse lugar que muitas vezes foi designado, produzir seu grito, sua arte e seu existir. Afinal, O tesão tá na mente e nos cinco sentidos da gente. Sigo viva com muito ódio e devidamente medicada. 

Próxima cena: Expedição reversa. Ato-manifesto, atenção: a revolução será pela língua. E se sequestrássemos as pessoas que a gente ama e as colocássemos numa realidade virtual? Quando encontrei as Fanchecléticas no evento Chá das Primas, ouvi da Letícia Bezamat que elas criaram esse coletivo por sentirem falta de ver corpas como as delas na cena, em cena, fazendo arte. Isso também tem sido o que me move no fazer artístico, e observamos que isso tem sido o grande motor de pulsação daquilo que podemos chamar de tecer redes, criar famílias, se agrupar, gerar coletividade dentro de lugares primordialmente cisgênero, patriarcais e brancos. Ocupar esses espaços. Como ocupar o lugar da inexistência? De onde falo ou tento criar diálogo sobre esses fluxos de vida fico pensando, junto de minhas manas, que estamos num momento em que desconstruir ja não é mais o suficiente, precisamos constituir nossos espaços e novos sentidos no retorno espiralar do tempo. Em 2060 ainda pedimos a uma deusa, um pouco de malandragem. Eu achei incrível como as fanchas criaram uma linha do tempo SAPATÔNICA que consegue ir além da cena que vivemos no agora. Salve as fanchas, salve Grace Passô, salve Tibira, salve o velcro.

Como todo respeito às lavadeiras, com todo respeito à minha mãe, às minhas tias que foram lavadeiras, com todo respeito às mais velhas, peço licença para sair e finalizar este texto com um sentimento de acalanto trazido pela cena Varal, do coletivo 5só, que nos fez pensar sobre ancestralidade, sobre afetos, mas, principalmente, sobre uma questão muito importante de ser pontuada, sobretudo neste lugar, o genocídio da juventude negra é o nosso grande engodo. O Atlas da Violência, lançado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada e pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, em 2017, revela: a cada 100 pessoas assassinadas no Brasil, 71 são negras. Homens, jovens, negros e com baixa escolaridade são as principais vítimas. A selva é de pedra, mais especificamente a Afonso Pena. Para além de tudo o que foi dito e pensando nessa não/crítica ou nessa conversa possível por agora, ficam questões a serem pensadas, derrubadas, levantadas e principalmente vividas. Fazemos parte de um momento crucial no mundo e tudo pode estabelecer ligações, como diz a professora e psicanalista Suely Rolnik: “Qualquer ação nossa diz respeito ao planeta inteiro”.

Fredda Amorim é historiadora, Mestra em Artes Cênicas (UFOP) e atualmente doutoranda em Teatro (UDESC). Seu trabalho investiga a performance, intervenções urbanas, teatro, poéticas, processos de criação e performatividade de gênero dentro e fora das instituições. Desenvolve pesquisas, ações e práticas voltadas para as questões de gênero e raça, junto da coletiva plaTaforma QUEERLOMBOS, Coletivo Mica, Academia Transliteraria e MUTHA Brasil. Idealizadora da primeira empresa de produção cultural e comunicação coordenada por uma travesti: SHOWME Produções Artísticas e Comunicação.