NO CALOR DA CENA

23º FESTIVAL CENAS CURTAS | NOITE #3

02/09/2022

por Soraya Martins

Sobre florescer e questionar e chorar o vermelho

Reflexões e expansões a partir das cenas Tudo que é vivo enferruja sem deixar de florescer, Eumano, Carne y osso e Meu olho é máquina y meu sangue, microplástico: Qual é o corpo original? e Las Choronas.

Para Paulo e Chico

A sexta-feira do Festival Cenas Curtas reverberou em mim de modo diferente. Ela chegou sinalizando a possível despedida de Chico Pelúcio. O corpo-presença-Chico que, depois de 23 anos, desconfia que será a última vez ali, apresentando o Cenas Curtas, vibrando com a plateia e com os atores na coxia. Mas não existe última vez nesse festival, no teatro, o que foi plantado em terra fofa, regado com afeto, desejo, re-existência e criatividade não cessa. Chico, tudo que é vivo não deixa de florescer.

A presença e a pulsão de fazer teatro, logo pulsão de vida, se instauram pela querência de seguir em diante, apesar de tudo, e sobretudo. A cena-filme Tudo que é vivo enferruja sem deixar de florescer, criada por Luciana Lanza, Paulo César Bicalho e Papoula Bicalho, nos mostra isso, Chico. Ela pulsa velhice-juventude, fim-começo, Paulo César Bicalho-Chico, pulsa fertilidade e germina. Ah! A presença de um ator que consegue ocupar vários lugares ao mesmo tempo, com uma interpretação minuciosa, entre silêncios, respiros e olhares de quem já viveu mais e nos ensina a fabular tempos e espaços para podermos falhar outras vezes e falhar melhor ainda. Paulo, com seu corpo ferrugem-adubo ocupa milagrosamente a cama do filme e a cama da cena, se faz presença na ausência, num jogo de cena que aponta para uma reinvenção de mundos. É nessa reinvenção que ele, Paulo, floresce, se planta/nos planta – você, Chico, eu e o público – e retece constantemente sua semeadura.

Distribuir sementes é difícil… Em meio aos racismos e às violências que nos acometem cotidianamente, a cena Eumano, do Coletivo Viravoltear, nos leva para as impurezas da vida. Com cenário e figurinos de excessos, metaforizando o sujo das relações humanas, o coletivo estabelece um jogo entre o exagero e a falta, simbolizado, de um lado, pela abundância de atrocidades, crimes e desigualdades, e, de outro, pelo pouco que resta de quatro personagens/personas que tentam sobreviver em meio ao caos. Eumano é uma experimentação do transbordamento, do muito que precisa ser dito por meio das palavras, das imagens e dos corpos que restam, numa tentativa de driblar-viravoltear as mazelas da própria existência para poder sorrir “de ser delícia”, tentar adentrar na carne y no osso e descobrir e/ou reinventar nós mesmos.

Carne y osso, Meu olho é máquina y meu sangue, microplástico: Qual é o corpo original?, de Morgs Rodriguez, também traz para a cena o excesso. Aqui, o muito de objetos – telefone, máquina de moer carne plástico – e o muito de sons e luzes sinaliza para uma “estética do muito” e estabelece uma relação crítica com a sociedade e seus modos exagerados de consumo. O excesso de lixo, gás carbônico, ruído, plástico está moendo nossos corpos. Na vida, nada se leva, tudo se deixa somente? O direito à água ainda é possível? O corpo ainda pulsa sangue? Alguém escuta o grito silencioso que sai da carne y do osso y da performance de Morgs?

É preciso florescer. Chorar férteis lágrimas vermelhas, sorrindo. Avermelhar, ser vermelho de luta, cor de fogo, elemento que tem poder de transformar. A cena Las Choronas, de Las Choronas Companheiras Teatrais, fecha a sexta-feira do festival chorando-rindo. Um riso forjado na radical tentativa de transformar a dor.

Um riso rota de fuga da barbárie.

Um riso surto.

Um riso de uma felicidade que, infelizmente, ainda não chegou.

Um riso deboche.

Um riso alucinógeno.

Um riso que cumpre uma função social de ficcionalizar o real, não o transformando em mentira, antes, trançando estratégias para dar vida ao impossível desse real.

Criar presença na ausência.

Não esquecer da semeadura dos que vieram antes.

Reinventar semeadura para os de agora & para os que ainda estão por vir.

Viva Paulo-Chico. Viva o teatro!

Soraya Martins é crítica, atriz, pesquisadora de teatros e curadora independente. Foi curadora do Festival Internacional de Artes Cênicas da Bahia-FIAC 2019-2021 e do Festival Internacional de Teatro FIT-BH 2018. Doutora em Literatura (PUC Minas), pesquisa as estéticas contemporâneas negras e seus processos de sociabilidade e fabulação em cena.