24º Festival de Cenas Curtas :: Segunda noite

14/09/2023

por Carlandréia Ribeiro

Segunda noite de um festival Gostoso Demais nesse chão consagrado ao teatro e suas maravilhosas possibilidades. O Cenas Curtas trouxe para o palco questões cadentes dos aspectos sociais. Temas muitas vezes incômodos, os quais temos dificuldade de vocalizar como se ao não tratarmos desses assuntos o fizéssemos desaparecer.

No entanto,  para além dos órgãos de controle,  muito vezes falhos em mitigar os impactos dessas questões,  temos a arte que tudo revela com lentes sensíveis e cortantes. O jogo, o cômico, a plasticidade dos corpos em cena colocam no centro da roda aquilo que muitas vezes nos recusamos a enxergar e a tomar nas mãos a responsabilidade que nos cabe.

Voilà!

SALADA MISTA – FANCHECLÉTICAS E DIZ TRAVA ATRAVÉS DO OLHAR (BH/MG)

Em Salada Mista revelam-se os ingredientes servidos à infância por uma parte considerável da sociedade que insiste em não reconhecer a criança como sujeito – “a gente finge que é gente” pra ver se alguém reconhece a nossa alteridade.

Em um país com recordes de abuso infantil, a malfadada expressão tantas vezes repetidas na salas e cozinhas da casas de família em tom imperativo da autoridade dos progenitores: menino não tem querer.

A prerrogativa da autoridade que impõe às crianças convivências inconvenientes, a terem seus corpos tocados de forma indesejada,  pouca ou nenhuma escuta das suas opiniões e desejos.
É brutal e assustadora a ideia de que uma criança corra riscos a sua integridade física e emocional dentro de sua própria casa e estando sob a responsabilidade de parentes próximos, que deveriam ser de sua inteira confiança,  sendo expostas ao abuso.

As crianças, em sua inocência não sabem o perigo de se oferecer carona ao escorpião na travessia do rio-vida.

O elenco de Salada Mista, Fancheléticas e Diz Trava Através do Olhar, com atuação de Carmen Marçal, devore se, Letícia Angelo, Letícia Bezamat, Mel Jhorge, Sol Markes, e direção de Amora Tito, faz, por meio da inocência dos jogos e das brincadeiras da infância uma confidência incômoda e grave. A “brincadeira vira saída”, quando gritar e dar sinais de perigo já não basta.

Segundo dados do governo, os quatro primeiros meses de 2022, foram registradas 6,4 mil denúncias e 10,4 mil violações sexuais contra crianças e adolescentes, com casos de exploração sexual, abuso, estupro e violências psíquicas. Se comparadas com o mesmo período deste ano, as violações representam um acréscimo de 68%.

mmm – CAMILA JORGE, UMA EM COMPANHIA (CURITIBA/PR)

Mmm, da fabulosa Camila Jorge, chega direto de Curitiba aportando no centro do palco-picadeiro do Galpão Cine Horto com sua maternagem clownnesca, desengonçada, aflita,  insegura e muito divertida. De cima de sua casa-mesa, as agruras e delícias do puerpério. Um drama vivido pelas mulheres que Camila Jorge, com sua comicidade e inteligência corporal, nos delicia enquanto a assistimos entregando um libelo de libertação feminina.

Para as sociedades judaico-cristãs o papel da mãe não pode falhar,  afinal, de uma mãe se espera a perfeição,  a plena dedicação e nada menos de que ela seja a imagem e semelhança de Nossa Senhora, que de preferência conceba sem pecado.

Para nossa felicidade e delírio, o inusitado e insurgente universo da palhaçaria, aqui muito bem encarnado por Camila, nos permite dar o outro lado dessa moeda.

Ela pede socorro,  precisa se reencontrar nem que seja por umas horinhas,  nem que isso a faça sentir despencando do abismo imaginário da beira de sua casa-mesa. Ela está separada do mundo e desterritorializada de si mesma.

Mulher em puerpério fica quase nula. Toda a sua energia está voltada para os cuidados com a cria. Se ela se abastece do amor incomensurável por aquele ser lindo e frágil,  por outro lado,  sua individualidade desaparece soterrada por montanhas de fraldas,  pagõezinhos e apetrechos de cuidados maternais.

Culpa,  medo de fracassar como mãe,  frustração por não se reconhecer mais,  os peitos inchados de leite. Uma vaca profana,  com sua concha também inchada, derramando seu leite bom entre as pernas.

Um pouco de atenção e a vontade de se sentir novamente inteira e una,  a falta que um cheiro no cangote faz a uma puérpera, só ela sabe enquanto materna de dentro de sua casa-mesa.  De certo que existem muitos perrengues na fase do puerpério,  mas sempre encontraremos uma maneira de rir de tudo isso.

Camila Jorge já encontrou a sua, falta a nós,  enquanto sociedade,  encontrarmos, aos modos das comunidades tradicionais, um jeito mais humanizado de acolhermos as puérperas com mais carinho.

ROTA DE FUGA – SOBRILÁ CIA DE TEATRO (SABARÁ/MG)

Rota de Fuga é um grito que precisa ser ecoado e entoado por todos nós. Minas Gerais é território que vive sob constante ameaça pela sanha exploratória,  o que põe toda a sua gente a mercê de uma lógica perversa onde empresas nacionais e multinacionais seguem devorando nossas montanhas.

Tais empresas exercem o biopoder sobre populações inteiras,  causando devastação e tragédia. Utilizam-se dos mais variados dispositivos de controle social, num jogo de simulacros,  o que sugere cuidado,  como as placas de aviso que inspiraram esta cena,  e que na verdade servem para manter um estado de gatilhos de medo e de angústia. Ao serem vistas como muro de arrimo da economia dessas localidades porque empregam boa parte da mão de obra, acabam por criar uma condescendência que deveria ser inaceitável.

A lama que cobriu Mariana e Brumadinho soterrando tudo que encontrou pela frente, que promoveu  o desterro de comunidades tradicionais quilombolas e indígenas causando dano irremediável ao meio ambiente ainda inunda de tristeza  centenas de famílias. Sabará, São Sebastião das Águas Claras,  Caeté,  são apenas alguns exemplos.

Na cena apresentada nessa noite, sob a direção de Lenine Martins, com os atores e criadores, Denise Leal, Diego Roberto e Éder Reis, e dramaturgia de Diego Roberto, é um soco no estômago. Questiona a nossa capacidade de indignação diante das atrocidades causadas por um sistema que já sabemos falho e hostil à vida.

Não podemos mais permitir que um sistema como esse, calcado no capitalismo exploratório, continue determinando quem merece viver e quem deve morrer. Estamos diante de um ecocídio e esta cena nos indica que a verdadeira rota de fuga deve ser traçada por nós.

CAMPO DE MANDINGA – JACK DINIZ (BH/MG)

Jack Diniz, dirigido por Letícia Araújo, que divide a dramaturgia Lucílio Gomes, vem nos dar notícias da história de Seu Sete Coroas.

Salve a malandragem! Salve o povo mandingueiro que desde antigamente,  até as encruzilhadas de hoje,  nos dão régua,  compasso e passo nos caminhos desde Aruanda.

Campo de Mandinga tem importância nesse lugar de nos colocarmos como senhores das nossas próprias histórias,  de falarmos da nossa própria voz. Dando fato é relato do jogo de dentro e de fora,  capoeira jogada na ginga, no cotidiano enfrentamento dos corpos negros que trafegam por entre as brechas pra sobreviver às abordagens violentas do estado policial ancorada pelo racismo.

Tem mandinga,  tem herança mandingue, fé nos que vieram antes e nos ensinaram a firmar o ponto. Acende uma vela pro Seu Sete Coroas e alumia o caminho da tão sonhada liberdade, povo Preto.

Laroyê!

Fotos das cenas por Guto Muniz

— Carlandréia Ribeiro é atriz, diretora, professora e curadora, cuja trajetória artística é marcadamente influenciada pela atuação junto aos movimentos negros e pelos negros em movimento. Co-idealizadora do projeto Diálogo Transatlântico Brasil Senegal, em parceria com Ibrahima Djitté, presidente da Assossiation Humanitaire Yirwa, com sede no Senegal e também criadora do projeto Cartografia da Memória e do Afeto.