
No Calor da Cena – 28/09/2018
>>> fotos: Kika Antunes
Dias mulheres virão
por Nina Caetano
Liderado pelas mulheres, o movimento de rejeição a um candidato machista, racista, homofóbico e violento vem crescendo nesta primavera feminista e ontem, dia 29 de setembro, milhares foram às ruas para dizer #eleNÃO, num protesto contra o fascismo que ameaça comandar nosso país.
O dia de ontem também foi, no Festival de Cenas Curtas, marcado pela força e presença femininas. Eu diria mais: conforme profetizou o companheiro de arte e vida, Clóvis Domingos, no primeiro dia do festival, “o Cenas Curtas é das mulheres!”. Profecia que vimos realizar-se a cada noite, em composições (po)éticas nas quais se misturam e se contrapõem o pessoal e o político, a teatralidade e a performatividade, os rasgos de lirismo, o deboche e o discurso direto, o ficcional e o real em cena: na primeira noite, a avassaladora Encontros e Desencontros com Fátima Bernardes, do coletivo Transborda, inaugurou o matriarcado da cena, colocando em jogo as mães de suas integrantes. Na segunda, a plataforma Doras, em Brasa, trouxe o discurso “inflamado” de 16 mulheres que abordaram suas questões urgentes por meio de simultaneidades provocativas, explodindo em desordem e alegria. Aparecida abriu a terceira noite, num solo que, entre levezas e dores, evocou o feminino por meio da lembrança da mãe.
No quarto e último dia do Festival de Cenas Curtas, o palco foi dominado por trabalhos concebidos, dirigidos e atuados por mulheres. Entre solos e cenas coletivas, trabalhos mais ou menos experimentais, o trânsito por várias poéticas: do jogo com a máscara à coralidade brechtiana, do humor ao drama, do lirismo ao grotesco. Ali, o estético e o político esgarçaram fronteiras, encontrando modos de falar sobre questões comuns, mas também das subjetividades presentes em cena.
Abrindo a noite, a performance-manifesto Todas as vozes, todas elas, dirigida por Cristina Tolentino e realizada junto ao Grupo de Teatro Mulheres de Luta Ocupação Carolina Maria de Jesus. No palco, cadeiras, baldes e bacias. Mulheres entram, em alegre polifonia. Sentam-se e realizam uma ação banal – cortar batatas – enquanto falam todas ao mesmo tempo. É possível entreouvir, em meio ao alegre vozerio, diálogos cotidianos – a falar de gostos, amores e desejos – entremeados pela chamada a outras mulheres, presentificadas por seus nomes: Marielle (presente!), Edite (presente!), Olga (presente!), Jaqueline (presente!), entre outros…
A coralidade organiza a dramaturgia e marca o corpo coletivo, denunciando violências por meio de cartazes e de falas que revelam, na culpabilização da mulher, o machismo do senso comum. Apesar disso, a força coletiva não anulou as singularidades e vemos a expressão de cada uma. Em determinado momento da cena, por exemplo, cada uma delas entra – é um momento especial, e todas se arrumam, se fazendo particularmente bonitas para ele – e, enunciando o próprio nome, diz de si: de quem é (ou de quem era) e das transformações que a vivência na Ocupação operou em sua vida e no seu modo de ver o mundo.
O cotidiano da Ocupação é trazido ao palco também por meio de um vídeo. Tendo ao fundo o poema Vozes-Mulheres, de Conceição Evaristo, o vídeo traduz a tessitura desses fios singulares que, no entanto, não se fazem sós: se fazem nós e têm, nas dobraduras do passado, outras mulheres que se atualizam no fazer de agora:
A voz de minha bisavó/ ecoou criança/ nos porões do navio.
ecoou lamentos/ de uma infância perdida.
A voz de minha avó/ ecoou obediência/ aos brancos-donos de tudo.
A voz de minha mãe/ ecoou baixinho revolta/ no fundo das cozinhas alheias/
debaixo das trouxas/ roupagens sujas dos brancos/ pelo caminho empoeirado/
rumo à favela.
A minha voz ainda/ ecoa versos perplexos/ com rimas de sangue/ e fome.
A voz de minha filha/ recolhe todas as nossas vozes/ recolhe em si/
as vozes mudas caladas/ engasgadas nas gargantas.
A voz de minha filha/ recolhe em si/ a fala e o ato.
O ontem – o hoje – o agora.
Na voz de minha filha/ se fará ouvir a ressonância
o eco da vida-liberdade.
O jogo com a memória está presente também em Foi só pra continuar viva, mas de modo totalmente diverso. No solo da atriz trans Fabíola Martins, dirigido por Débora Vieira, o cômico é a chave para a produção da crítica social. Atravessado por vários registros de atuação – do stand-up ao drama – nele são experimentados diferentes modos de revelar a hipocrisia e a violência que se fazem concretas na realidade nada fácil de uma travesti, habitante dum país em que tanto se mata. Sem perder a humanidade, Fabíola confronta a plateia (e os homens que lá estão) com verdades pouco confortáveis. Subvertendo o discurso evangelizador com ironia, ela revela o machismo escondido em cada heteronormatividade vivenciada socialmente.
Em um registro quase oposto – em que a palavra ganha densidade lírica – Verbal do Tempo, a terceira cena, evoca a memória como fio condutor para o trabalho da atriz, Maria Clara Lemos, que também concebeu a dramaturgia. Neste solo em que está presente, de maneira poética, o elemento circense – nos delírios da memória, a velha de cadeira de rodas voa no trapézio – o jogo com a máscara constrói o tempo da velhice. Trazendo a delicadeza da poesia de Manoel de Barros, são proliferadas infâncias por meio da palavra.
Fechando a noite, a irreverente, cáustica e debochada Pocilga – triunfo das porcas bota em cena a performatividade e o jogo do real. A partir de múltiplas referências da cultura ocidental, quatro mulheres – num cenário grotesco de lama e carne – jogam com tipos decadentes, contrapondo-se ao ideal da mulher “pura, recatada e do lar”. Também aqui (foi recorrência nas cenas coletivas de mulheres apresentadas no Festival) vemos a simultaneidade presente, vetor de composição da cena, que se torna polifônica, criando camadas de sentido a partir do “diálogo” entre gestos, falas e canções. Em cena, a inusitada presença da filha bebê de uma delas traz a dimensão do real que, sem pretensões documentais, performa a simples existência.
E é de existência que se trata. Desobediente, a cena das mulheres tem buscado outras formas de fabular nosso estar e ser no mundo, rompendo e subvertendo cânones estabelecidos pelo olhar do Outro. Seja celebrando nosso corpo, ironizando o discurso dominante ou recusando o lugar de objeto, mulheres estão reconstituindo e propondo outras poéticas de re-existência.